Mais cedo em consulta ao "doutor":
-Jasmin, o que você mais gosta de fazer?
- Não sei falar isso...
-Saberia desenhar? Pode desenhar para mim?
Silêncio. O médico lhe entregara um papel que minutos depois ela devolveria cheio de corações e pequenas casinhas. O psiquiatra olhou para o desenho, esboçou um sorriso falso e disse.
-O que isso significa para você?
Silêncio.
- Pode me dizer algo sobre esse desenho Jasmin?
- Minha mãe disse para o meu pai domingo " Tudo é esse jogo de futebol!" e depois meu tio falou "É tudo um jogo e quem vence, vence"
-Sim? O que isso tem a ver com o desenho?
-Nada.
- Então... ( o médico respirou fundo)
- Está perdendo a paciência comigo, doutor?
-Não, só quero que me diga se sabe que sua mãe falou sobre um jogo que ...
-... que é diferente do jogo que meu tio falou. Eu sei. O meu tio vende coisas quebradas para as pessoas e cortou o cabelo da minha irmã enquanto ela dormia.
- Então...
-... então ele acha que tem que vencer sempre. É como se as pessoas fossem uma bola e ele tivesse que chutar sempre. Meu pai é do mesmo jeito... Deixa pra lá!Eu sou idiota!
-Não. Você é bem inteligente para uma garota de 10 anos.
-Você acha?- ela abriu um sorriso
O doutor com um olhar curioso indagou
-Gosta de ser elogiada, Jasmin?
-Quem não gosta, doutor?- disse um pouco mais retraída.
-É verdade. Todo mundo gosta.
-Mas comigo quase nunca acontece...
- Por que diz isso?
Silêncio
- Jasmin, acabou o seu tempo. A gente se vê novamente e eu falo com sua mamãe.
-Já sabe o que eu tenho?
-Por que tão apressada? Minha companhia é ruim?
- Não... só quero saber porque eu estou meio cansada de ser esquisita.
O doutor a encarou durante alguns minutos.
-Tire essa história de que é esquisita da sua cabeça,ok?
-É o que todo mundo diz.
- A maioria das pessoas nem sempre falam a verdade.
- Bem capaz...
O doutor sorriu e a levou até a porta.
Assim que saiu dali ela sabia que não poderia voltar . A sua mãe não teria tanto dinheiro para pagar por uma hora de conversa. "É uma pena. Eu realmente gostei dele." Mais tarde na escola a professora a entregou um comunicado da secretária.
-O que é isso, tia?
- Um comunicado aos seus pais?
-É ruim?
-Eu estou sorrindo, Jasmin?
-Não. Mas o que é tia?
- JASMIN! EU JÁ TE DISSE QUE É PARA SEUS PAIS! Preciso dizer mais alguma coisa? Você é surda?
-Não precisa gritar, tia Márcia. Minha mãe está na sala da alfabetização. Vai lá e fala com ela. Não precisa de bilhete.
-JASMIN, VOCÊ ESTÁ DE CASTIGO!
-Ótimo- disse com a voz embargada enquanto o resto da classe sorria.
Mais tarde quando chegou em casa decidiu mostrar a mãe o bilhete.
-O que diz aí mãe?
-Está falando que você só pode entrar acompanhada dos pais ou responsáveis.
-Todo dia eu vou para escola com você.
As duas riram.A mãe franziu o cenho.
- Que foi mainha?
- Estão reclamando do uniforme;
-Por que? Eu uso... sapato preto, meia branca...
-Sua tia escreveu aqui "sapato danificado"...
- Por mim eu nem vou mais pra lá!
As duas se entreolharam, Jasmin estava quase chorando.
-Mãe, eu não preciso estudar lá... Me põe na pública!
-Larga de besteira menina! Amanhã converso com sua tia e fica tudo bem, ok?
A luz amarela da sala, a mesa redonda, a comida em cima dela, o pai chegando do trabalho, as irmãs brigando por causa do livro de Machado de Assis no quarto, o sapato "danificado"... era tudo um jogo.
Antes de dormir e após a oração noturna com a mãe as irmãs, o pai gritava e chutava alguma porta como sempre, ela pensou em voz alta:
- Preciso aprender a chutar pessoas, como se fossem bola.
(Continua... talvez.)
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